L\u00edderes com valores s\u00e3o os que carregam a lanterna em tempos escuros<\/p>\n

Pegos sem \u201ca roupa corporativa\u201d, os l\u00edderes se viram for\u00e7ados em tempos extremos a serem eles mesmos. E ganharam pontos ao olhar da sociedade. Outros desceram ladeira abaixo.\u00a0 \u00a0Por Ricardo Voltolini<\/p>\n

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A crise do coronav\u00edrus me fez lembrar uma frase do megainvestidor Warren Buffet: ‘Voc\u00ea s\u00f3 percebe quem est\u00e1 nadando pelado quando a mar\u00e9 baixa’.\u00a0 A met\u00e1fora se aplica muito bem, a meu ver, aos efeitos da pandemia sobre a reputa\u00e7\u00e3o de l\u00edderes empresariais.<\/p>\n

Pegos sem \u201ca roupa corporativa\u201d, confeccionada para preservar a imagem em tempos normais, eles se viram for\u00e7ados em tempos extremos a serem eles mesmos, recorrendo \u00e0quilo que nos distingue, como seres singulares, na hora de tomar decis\u00f5es: nossas cren\u00e7as e valores. Especialmente em horas dif\u00edceis, somos em grande medida o que acreditamos, agimos em rela\u00e7\u00e3o aos outros e \u00e0s circunst\u00e2ncias segundo a orienta\u00e7\u00e3o de valores humanos, fruto de nossos princ\u00edpios morais e \u00e9ticos.<\/p>\n

Postos a nu, alguns l\u00edderes ganharam pontos ao olhar da sociedade. Outros desceram ladeira abaixo. O hamb\u00farguer do Madero, por exemplo, perdeu bastante de sua gra\u00e7a ap\u00f3s as declara\u00e7\u00f5es de seu dono, J\u00fanior Durski, criticando a quarentena proposta pelas autoridades de sa\u00fade, sob a alega\u00e7\u00e3o de que a economia n\u00e3o pode parar \u201cpor causa de 5 mil ou 7 mil mortes.\u201d\u00a0 Algumas horas depois, j\u00e1 consciente da amea\u00e7a de boicote,\u00a0 o empres\u00e1rio pediu desculpas. N\u00e3o convenceu.<\/p>\n

O mesmo ocorreu com os pratos do Giraffas. Come\u00e7aram a azedar minutos depois de Alexandre Guerra, ex-CEO da empresa e filho do dono, usar as redes sociais para defender l\u00f3gica semelhante \u00e0 de Durski. Para \u201crestabelecer a verdade\u201d sobre o que pensa a empresa, o fundador Carlos Guerra, em atitude surpreendente, convidou o pr\u00f3prio filho a deixar o grupo de acionistas e o conselho da rede.<\/p>\n

Dias antes, Luciano Hang, dono da Havan, resolveu criticar em seu Facebook a \u201chisteria\u201d criada por prefeitos e governadores, amea\u00e7ando demitir mais de 22 mil colaboradores por causa da crise que, imagina, vir\u00e1 da paralisa\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica.<\/p>\n

N\u00e3o, felizmente n\u00e3o houve s\u00f3 proje\u00e7\u00f5es de cat\u00e1strofe contra o isolamento sanit\u00e1rio. No outro extremo, a Natura anunciou o compromisso de manter o emprego dos seus colaboradores nos pr\u00f3ximos 60 dias. Refor\u00e7ou ainda que suas f\u00e1bricas v\u00e3o deixar de produzir as linhas de maquiagem e perfumaria, para se concentrar nos itens de higiene pessoal, al\u00e9m de \u00e1lcool em gel e l\u00edquido, considerados, segundo a empresa, \u201ccruciais para frear a propaga\u00e7\u00e3o do v\u00edrus.\u201d<\/p>\n

A Natura n\u00e3o est\u00e1 sozinha na trincheira oposta a das empresas que enxergam um (falso) dilema entre conter o v\u00edrus e salvar a economia do colapso. Organiza\u00e7\u00f5es como Ambev anunciaram o investimento na constru\u00e7\u00e3o de um hospital em S\u00e3o Paulo. Ip\u00ea, Coca-Cola, Botic\u00e1rio, Cosan, Atvos e tantas outras decidiram fabricar \u00e1lcool em gel. Outras empresas se apressaram a doar dinheiro para m\u00e1scaras e respiradores.<\/p>\n

O enfrentamento ao v\u00edrus, tratado como um desafio comum, derrubou inclusive as fronteiras da concorr\u00eancia. Ita\u00fa, Santander e Bradesco recolheram as armas e decidiram juntos doar 5 milh\u00f5es de testes r\u00e1pidos. Vivo, Claro, Tim e Oi tamb\u00e9m lan\u00e7aram, em conjunto, uma campanha garantindo conte\u00fados gratuitos e b\u00f4nus de internet.<\/p>\n

O recado por tr\u00e1s desses gestos p\u00fablicos n\u00e3o deixa margem \u00e0 d\u00favida: um momento t\u00e3o dram\u00e1tico exige coopera\u00e7\u00e3o, n\u00e3o divis\u00e3o. Nosso inimigo comum, um ente microsc\u00f3pico, insidioso e letal, n\u00e3o escolhe v\u00edtimas. E mais: uma vida preservada n\u00e3o tem pre\u00e7o, n\u00e3o pode ser medida em PIB e compensa o sacrif\u00edcio coletivo que teremos de fazer para superar a queda da atividade econ\u00f4mica.<\/p>\n

Nas crises, j\u00e1 disse Balzac, ou o cora\u00e7\u00e3o se parte ou endurece. Por essa raz\u00e3o, constituem uma boa oportunidade de distinguir quem age de quem n\u00e3o age orientado por valores humanos, como respeito \u00e0s pessoas, altru\u00edsmo, empatia, solidariedade, boa conviv\u00eancia, prud\u00eancia, temperan\u00e7a e justi\u00e7a.<\/p>\n

No caso do coronav\u00edrus, basta observar as duas fac\u00e7\u00f5es e os comportamentos predominantes. De um lado, filiam-se os cr\u00edticos \u00e0s duras medidas de confinamento, que contestam as autoridades p\u00fablicas, ironizam o poder de fogo do v\u00edrus, minimizam as mortes, atribuem exageros \u00e0 m\u00eddia e amea\u00e7am com demiss\u00f5es. Nada fazem al\u00e9m de usar as redes sociais para pregar o caos econ\u00f4mico como justificativa para a tese de que o desemprego mata mais do que a doen\u00e7a.<\/p>\n

(Vale dizer: diferentes estudos mostram que o problema n\u00e3o s\u00e3o as medidas de isolamento \u2014 de longe, a melhor e mais eficaz solu\u00e7\u00e3o \u2014 mas a pandemia em si combinada com eventuais dificuldades de os governos organizarem a quarentena no tempo certo. Economistas de diferentes escolas garantem que os governos que agem r\u00e1pido, logo no in\u00edcio da curva da doen\u00e7a, s\u00e3o os que saem mais r\u00e1pido e mais fortes da crise econ\u00f4mica.)<\/p>\n

Do outro, re\u00fanem-se os que reconhecem a amea\u00e7a da Covid-19, defendem o isolamento social como estrat\u00e9gia dura mas justa para o conjunto da sociedade, alinham-se com a prud\u00eancia dos cientistas e recomendam o home office em respeito \u00e0 sa\u00fade dos seus colaboradores e da coletividade.<\/p>\n

Usam as redes sociais para educar a popula\u00e7\u00e3o sobre h\u00e1bitos de higiene e preven\u00e7\u00e3o e sobre a import\u00e2ncia do confinamento, mas tamb\u00e9m para convocar \u00e0 colabora\u00e7\u00e3o, anunciar a doa\u00e7\u00e3o de produtos e servi\u00e7os e apoiar tanto os trabalhadores em servi\u00e7os essenciais, sob risco sanit\u00e1rio, quanto os aut\u00f4nomos e propriet\u00e1rios de pequenos neg\u00f3cios, sob risco socioecon\u00f4mico, justamente os\u00a0 primeiros \u2013 e n\u00e3o os grandes \u2013 a sofrerem as consequ\u00eancias da recess\u00e3o.<\/p>\n

Sugiro ao leitor uma an\u00e1lise da descri\u00e7\u00e3o dos l\u00edderes dos dois grupos. Note que no primeiro n\u00e3o h\u00e1 uma \u00fanica men\u00e7\u00e3o a valores humanos. Vale dizer: n\u00e3o por m\u00e1 f\u00e9 deste analista. Em nenhum momento, acessando conte\u00fados das redes, observei qualquer atitude que expressasse altru\u00edsmo, coopera\u00e7\u00e3o, solidariedade, interesse em cuidar ou servir. E n\u00e3o por que esses valores n\u00e3o existam \u2013 quero seguir crendo que eles devem existir, ainda que em estado let\u00e1rgico, num compartimento escondido do lado direito do c\u00e9rebro, ou serei for\u00e7ado a descrer da humanidade dos humanos.<\/p>\n

Mas porque esses valores certamente est\u00e3o submetidos, mesmo em tempos de profunda incerteza para o mundo, \u00e0 l\u00f3gica econ\u00f4mico-financeira, um sistema de cren\u00e7as autorreferente, egoico e narcisista, dono de uma \u00e9tica draconiana, baseado num punhado de certezas muitas vezes contr\u00e1rias ou at\u00e9 nocivas aos valores essencialmente humanos, que aceita, como naturais, o ego\u00edsmo, a competi\u00e7\u00e3o, a deslealdade e a ideia de que o lucro, em si, justifica prejudicar pessoas e meio ambiente.<\/p>\n

Convido o leitor a mais uma reflex\u00e3o: voc\u00ea gostaria de ser liderado por um l\u00edder que minimiza as mortes humanas em nome da ideia de manter funcionando a economia? E mais: voc\u00ea se sentiria tranquilo em trabalhar numa empresa cujo presidente diz, em p\u00fablico, que pode ter que demitir 60% do quadro numa tentativa de pressionar as autoridades sanit\u00e1rias a romperem a quarentena, mesmo sabendo do risco dessa medida para a vida de milhares de brasileiros?<\/p>\n

Se voc\u00ea, leitor, respondeu sim \u00e0s duas perguntas, s\u00f3 me resta lamentar. Mas ainda \u00e9 tempo de mudar de opini\u00e3o. O modelo de empresa em que voc\u00ea acredita, e por tabela o tipo de lideran\u00e7a que cultua, avan\u00e7am na contram\u00e3o do que se discute de mais contempor\u00e2neo em gest\u00e3o de pessoas e organiza\u00e7\u00f5es. Caminham para a extin\u00e7\u00e3o. Poderia citar, em defesa da minha tese, as in\u00fameras iniciativas e manifestos pr\u00f3-empresas mais sustent\u00e1veis deflagrados em todo o mundo, especialmente nos \u00faltimos dez meses. Ou a expans\u00e3o de movimentos como o Sistema B, Capitalismo Consciente, Capitalismo do Amanh\u00e3.<\/p>\n

Prefiro me ater ao mais recente F\u00f3rum Econ\u00f4mico Mundial, realizado em janeiro \u00faltimo, que dedicou um dia inteiro de discuss\u00f5es \u00e0 ideia, muito em alta, de colocar o prop\u00f3sito antes do lucro. Ao contr\u00e1rio de outros tempos, decis\u00f5es de neg\u00f3cio n\u00e3o podem mais ser vistas como meras quest\u00f5es de ordem t\u00e9cnica, eventos associados a uma realidade paralela e autossuficiente, um fato isolado da vida. S\u00e3o sim, cada vez mais quest\u00f5es de natureza \u00e9tica, pois resultam em impactos que podem, no caso presente, matar ou preservar vidas numa pandemia global.<\/p>\n

L\u00edderes n\u00e3o podem ser mais tecnocratas. Precisam ser porta-vozes das aspira\u00e7\u00f5es da sociedade, indiv\u00edduos \u00e9ticos, transparentes e \u00edntegros, respeitosos em rela\u00e7\u00e3o \u00e0s pessoas e ao meio ambiente. Precisam, sobretudo, liderar com valores. Porque, nos tempos atuais, s\u00f3 mesmo os valores s\u00e3o capazes de gerar valor econ\u00f4mico e prosperidade.<\/p>\n

POdcast da Ideia Sustent\u00e1vel com Ricardo Voltolini:<\/p>\n

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